ARTIGO: A PEC 32/2020 pavimenta o caminho para a boa qualidade dos serviços públicos?

Se aprovada, medida pode enfraquecer substancialmente sistema de defesa da probidade na gestão pública

Pautada pelo discurso da necessidade de melhoria da qualidade dos serviços públicos, foi encaminhada ao Congresso Nacional, no dia 3 de setembro, a Proposta de Emenda à Constituição nº  32, de 2020, que altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa.

O texto, integrado por dez artigos, tem sido objeto de debates e controvérsias que gravitam em torno da ausência de correlação entre as razões da urgência na apresentação da proposta e o teor nela contido.

Muito se tem ouvido falar, nos últimos dias, sobre a escassez de recursos públicos para a alocação em áreas sensíveis, carência que é atribuída à folha de pagamento do funcionalismo público. As críticas giram em torno de altos salários, férias de 60 dias, bônus de eficiência para aposentados, fatores críticos que têm sido indicados como causas do nível de percepção da sociedade em relação à qualidade do serviço público brasileiro, a partir de dados levantados pela OCDE e divulgados por integrantes do governo.

Essa percepção quanto à qualidade do serviço público brasileiro deve ser posta em debate, de forma franca, sem seletividade narrativa, com vistas a abranger as reais causas que dão azo a essa visão, até porque ela não está diretamente associada ao serviço público em seu conceito subjetivo ou orgânico, mas à qualidade dos serviços públicos prestados pela Administração Pública, em sentido objetivo ou material.

Isso nos leva inevitavelmente a questionar se a flexibilização na forma de contratação de pessoal e a delegação da prestação de serviços a terceiros terão o condão de mudar essa percepção, dado que tal medida não se afina com o discurso da modernização do estado.

Conforme manifestação da Consultoria Legislativa do Senado Federal, por meio da Nota Informativa nº 5.394[1], de 2020, a exposição de motivos da PEC 32, ao analisar dados sobre a folha de pagamentos do Governo Federal e de seis Governos Estaduais, citando estudos do Banco Mundial, de 2019, corroborou a existência de uma série de distorções nos gastos com pessoal, deixando, contudo, de apontar prováveis causas dessas distorções, no rol das quais se incluem o excesso de cargos em comissão na Administração Pública, a realização de concursos públicos sem estudo de dimensionamento de pessoal e sem a estimativa de impacto orçamentário-financeiro, o que tem levado gestores a convocarem em número superior ao previsto nos editais, satisfazendo, por vezes, interesses pessoais, e não mirando na real necessidade da administração.

De um estudo realizado pelo FONACATE[2], com base no Atlas do Estado Brasileiro, elaborado pelo Ipea, que integra, inclusive, referida Nota Informativa, é possível perceber que o crescimento no emprego público no Brasil se deu, nos últimos trinta anos, basicamente na esfera municipal, que concentra 57% dos servidores, atualmente, crescimento que se encontra associado à expansão de serviços de assistência social, educação e saúde.

Diante disso, segmentos institucionais, associativos e acadêmicos passaram a formular, em síntese, pelo menos três questionamentos: o primeiro é se o Brasil precisa, de fato, de uma Reforma Administrativa. O segundo é se a Reforma Administrativa de que o Brasil precisa veio contemplada nos termos da PEC 32, de 2020. O terceiro é se a PEC alcançará efetivamente os fins a que visa atingir.

Neste artigo, porém, busca-se suscitar outra discussão de igual relevância, voltada a aferir se os princípios que serão inseridos no caput do artigo 37 se comunicam com as substanciais mudanças propostas aos incisos do mesmo artigo. É que, sendo o princípio vetor de interpretação e parâmetro para produção legislativa, há que se questionar se será possível alcançar imparcialidade, boa governança pública, responsabilidade, coordenação e unidade flexibilizando garantias essenciais ao regular funcionamento da máquina pública e à boa prestação dos serviços públicos.

Isso porque a PEC, ao propor mudanças no inciso V do artigo 37 da CRFB/88, buscou sepultar, no plano jurídico-constitucional, a clara diferenciação entre função de confiança e cargo em comissão, possibilitando que atividades estratégicas, gerenciais e técnicas possam ser atribuídas a cargos de livre provimento, institucionalizando (ou “constitucionalizando”) e conferindo aparência de legitimidade ao que é considerado ato de improbidade administrativa pelo STJ. [3]

Por outro lado, ao expurgar do texto constitucional a obrigatoriedade de percentual mínimo dos cargos de livre provimento em comissão para servidores de carreira, a proposta abre margem para a permanente rotatividade no provimento de cargos públicos, interditando à concretização do princípio da continuidade dos serviços públicos, inviabilizando a memória institucional, realidade que já é facilmente percebida no âmbito dos municípios brasileiros, onde cargos em comissão têm sido utilizados como moeda de troca.

O comprometimento à profissionalização da Administração Pública é evidente, principalmente quando se leva em conta que a PEC 32, embora disponha sobre a vedação ao exercício de outra atividade remunerada por agentes públicos, preconiza que tal vedação só alcança carreiras típicas de estado, não alcançando ocupantes de cargos de provimento em comissão, o que será um incentivo ao conflito de interesses.

Essa realidade tende a se agravar em razão da proposta de inclusão do §18 ao artigo 37, cujo texto dispõe que ao chefe de cada Poder caberá a definição de critérios mínimos de acesso aos cargos de liderança e assessoramento, ato infralegal, portanto, nada dispondo sobre órgãos autônomos.

Se, atualmente, já há desvios no provimento de cargos em comissão, a PEC passa a autorizar constitucionalmente a admissão de servidores para o desempenho de atribuições técnicas sem concurso público, sem aferir a capacidade técnica do escolhido para prestar serviços públicos, ampliando “a concentração de poderes nas mãos dos chefes do Executivo, na esteira da redução da participação social e das regras de accountability”, conforme destacado pela professora Maria Helena Dallari Bucci[4].

Aliás, a exposição de motivos da PEC consigna que o novo serviço público que se pretende implementar será baseado em quatro princípios, sendo a valorização das pessoas um deles, a partir do reconhecimento justo dos servidores, com foco no seu desenvolvimento efetivo.

Isso, porém, também não encontra guarida nas disposições trazidas, notadamente porque a PEC, sob a alegação de reduzir a desigualdade entre as carreiras, propõe a revogação do §1º do art. 39 da CF, exatamente o dispositivo que define critérios para a fixação dos padrões de vencimento e demais componentes do sistema remuneratório dos cargos.

Assim, o discurso pautado pela necessidade de reparação de desigualdades remuneratórias entre cargos distintos parece desconsiderar que há graus de complexidade e responsabilidade distintos entre cargos públicos, e que a remuneração deve levar em conta esses critérios.

Não há que se falar em combate a privilégios sem a imperiosa correlação entre a remuneração e o grau de complexidade e responsabilidades das atribuições do cargo, sob pena de ensejar distorções a privilegiar (remunerar sem critérios) e comprometer a eficiência e a qualidade na prestação dos serviços públicos, ao invés de incentivá-las.

Daí se conclui que a flexibilização da estabilidade não conduz ao alcance da imparcialidade e nem da boa governança, na medida em que pode inviabilizar uma atuação independente. O mesmo quanto ao princípio da unidade institucional, que tem que ser lido em conjunto com o da independência funcional, com vistas a interditar a arbitrariedade dos poderes públicos, por excesso ou desvio.

Não se pode olvidar, por fim, que propostas de emenda à constituição devem levar em conta aspectos políticos, econômicos, sociais e antropológicos, do que resulta concluir que, ao instituir o vínculo de experiência para carreiras típicas de estado como etapa de concurso, para além de inviabilizar a independência de agentes públicos que desempenham funções de fiscalização e investigação, durante o período de dois anos, despreza a percepção sobre a corrupção no Brasil e os influxos internacionais, que sinalizam para o reforço da independência institucional como condição de boa governança pública (como a Convenção de Mérida de Combate à Corrupção, a Meta 16.5 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, e a Resolução nº 1/18 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos).

Se aprovada, tal medida pode enfraquecer substancialmente o sistema de defesa da probidade na gestão de recursos públicos, inviabilizando a concretização do direito fundamental à boa gestão pública.

Artigo originalmente publicado em:
https://www.jota.info


[3] REsp 1.511.053

ISMAR VIANA – Mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). Vice-presidente nacional da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil.

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