A Resolução 332 do TCU e os riscos de nulidade de instruções processuais

O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, em sessão realizada na quarta-feira (6/10), uma Resolução que dispõe sobre a (des)organização do quadro de pessoal do Tribunal. Nela, dois pontos centrais preocupantes, começando pelo desapreço a preceitos constitucionais e legais, em ambos os casos, que afetam diretamente direitos e garantias processuais dos jurisdicionados e impõem ao controle riscos de nulidade e de conflitos de interesse.

São eles: (a) o ato interno “cria” hipótese de “requisição mediante cessão” de servidores de unidades auditadas para assessorarem a alta cúpula do TCU e com a remuneração paga pelo órgão de origem, e (b) ato interno “institui” atribuições de natureza diversa das previstas em lei e “permite” que servidores administrativos do TCU, com atribuições legais de administração e logística, dirijam Unidades de Auditoria, exercendo atribuições finalísticas de controle externo inerentes a cargo público distinto.

Neste artigo trataremos do 2° ponto, que busca alçar ao desempenho de atividades finalísticas de controle externo – típicas de Estado – servidores investidos em atividades administrativas e de logística.

Quais os impactos disso na regularidade do exercício do Controle Externo exercido pelo TCU, de que trata o art. 71 da CF? Pode um ato interno, a pretdiexto de tratar de organização, apartar-se de preceitos legais e constitucionais? Referida medida mantém aderência ao princípio da qualificação adequada, específico do controle? O normativo interno mitigará garantias processuais de quem se encontra sujeito ao controle pelo TCU?

Ao contrário do que é disseminado no senso comum, o significado de “competência” no serviço público está atrelado, antes de tudo, à autorização legal para a prática de atos em nome da Administração.

Assim, a qualificação pessoal de um agente público, por si só, não o credencia para o desempenho de qualquer atividade pública: em Direito Público, a legalidade administrativa impõe que competência legal não é para quem quer, é para quem tem, razão por que a competência para a prática do ato não deve se confundir com eventual aptidão para a prática dele.

Quando o desempenho dessas atribuições está relacionado ao controle dos atos da Administração Pública, a legitimidade do controle é condicionada à aderência ao princípio da qualificação adequada, que, nos ensinamentos de Jacoby[1], passa pelo necessário preenchimento de alguns requisitos, como o respeito ao regramento do concurso público específico, garantindo a prerrogativa da estabilidade aos agentes públicos que exercem a função de controle, protegendo-os contra investidas do próprio agente controlado, remuneração adequada, levando-se em conta o grau de complexidade e responsabilidade das atribuições (art. 39, §1º da CRFB/88), rodízio na designação das funções de confiança, tudo com vistas a evitar que o dever de independência do agente controlador venha a ser mitigado pelo desejo de permanência na função, bem assim que o controle esteja menos suscetível a manipulações, capturas e arbítrios.

Ao erigir o conceito de segurança a direito humano e fundamental, a  Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 enunciou a segurança jurídica na vertente voltada à confiança depositada pelos cidadãos nas instituições, sobretudo as controladoras, impondo a elas, então, parâmetros de regularidade de atuação, fim que também integra a meta 16.5 do Plano de ODS para 2030, da ONU, e que têm a independência como núcleo essencial e meio indispensável ao alcance da imparcialidade institucional, conforme positivado no artigo 6º da Convenção de Mérida sobre corrupção, recepcionada pelo Dec. 5687, de 2006, preocupação reafirmada, também, na Resolução n. 1, de 2018, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos[2].

Quem, então, no âmbito do TCU, é legitimado ao exercício das atividades finalísticas de auditoria e instrução processual no controle externo? Regulares ocupantes de cargo com essas atribuições legais, investidos mediante aprovação em concurso público para tanto.

Rememore-se que o ato emanado de autoridade incompetente padece de nulidade na sua origem, sendo que, a teor do art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 4.717/65, a incompetência fica caracterizada quando o ato não se inclui nas atribuições legais do agente que o praticou.

In casu, essa resposta emerge dos arts. 86 e 87 da Lei n. 8.443, de 1992 (LOTCU) – alocados no capítulo VII do Título III, dedicado à “Organização do TCU”, onde são descritas atribuições dos ministros, titulares e substitutos, e dos procuradores do MP junto ao TCU – e do art. 4º da Lei n. 10.356, de 2001, que dispõe sobre o Quadro de Pessoal e o Plano de Carreira do Tribunal de Contas da União.

Como a lei não traz palavras inúteis, o legislador, no art. 86, foi taxativo ao restringir deveres ao servidor que exerce funções específicas de controle externo no Tribunal de Contas da União, a quem o texto legal incumbe o dever de conclusividade das manifestações técnicas, com competência para a propositura e aplicação de multas, impondo o dever de guarda de sigilo sobre dados e informações obtidos em decorrência do exercício dessas funções.

Para o regular exercício desses deveres institucionais, o art. 87 conferiu exclusivamente a esses agentes, no desempenho de funções de auditoria, de inspeções e diligências, prerrogativas de livre ingresso em órgãos e entidades sujeitos à jurisdição do TCU, acesso a todas as informações e documentos necessários à realização do trabalho, além de competência para requerer, nos termos do Regimento Interno, aos responsáveis pelos órgãos e entidades objeto de fiscalizações, as informações e documentos necessários para instrução de processos e relatórios de cujo exame esteja expressamente encarregado por sua chefia imediata.

Uma interpretação literal desses artigos já leva o operador a concluir que as inspeções, auditorias e instruções processuais não podem ser realizadas por agentes públicos que não tenham sido submetidos ao crivo de concurso público para o exercício das funções específicas de controle externo, uma vez que não são autorizados por lei. Trata-se, assim, de contenção ao arbítrio controlador, de defesa de garantias processuais mínimas de quem se encontra sujeito ao dever de prestar contas ao TCU, que deve ser tratado como sujeito de direitos, e não como mero objeto de investigação.

Não por outra razão, ao admitir a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil na ADI 5128, ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra prática semelhante no Estado de Sergipe, o Ministro Marco Aurélio reconheceu que a reorganização do quadro próprio de pessoal do Tribunal de Contas afeta direitos subjetivos dos gestores e demais jurisdicionados, afetando garantias constitucionais.

Pensar diferente é como consentir que um agente sem autorização legal, por mera designação ou ato interno, possa ser investido de atribuições finalísticas e exclusivas de Estado que a lei não lhe confere, que não prestou concurso para exercer, de natureza distinta das suas.

Ocorre que atos infralegais somente podem regulamentar dentro da margem autorizativa legal, jamais de forma diversa do que dispõe a lei, e o panorama se agrava quando essa designação “ampla” parte de integrante do colegiado julgador, em uma instituição que concentra, além da função de julgamento, a função de investigação (auditorias, inspeções e instruções processuais conclusivas), como é o caso dos Tribunais de Contas brasileiros.

Nesse sentido, se os efeitos da Resolução n. 332, de 2021, não forem cessados, servidores e empresas sujeitos às fiscalizações e ao controle realizados pelo TCU poderão sofrer com a falta de independência desses “auditores-calça-curta”, pois a medida, na prática, retira dos jurisdicionados sob controle do TCU o direito constitucional de serem fiscalizados e terem os seus processos instruídos por agentes legalmente autorizados e aptos ao exercício das atividades de auditoria e instrução processual, o que pressupõe aprovação em concurso público específico para o desempenho da atribuição finalística de Estado.

Então, quem é o “servidor que exerce funções específicas de controle externo no Tribunal de Contas da União”, de que trata o art. 86 da LOTCU?

Essa resposta está na Lei n. 10.356, de 2001, que, ao dispor sobre as atribuições dos cargos que integram o quadro de pessoal do TCU, tratou, separadamente, nos arts. 4º ao 9º, da natureza de cada cargo público da Instituição, definindo os autorizativos legais de atuação (regra de competência). Ela confere exclusivamente ao Auditor de Controle Externo – Área de Controle Externo, no art. 4º, a natureza finalística de controle externo. Por outro lado, no art. 5º, atribui ao Analista de Controle Externo – Área de Apoio Técnico e Administrativo competência para “atividades administrativas e de logística”.

Estaria o TCU retrocedendo ao Decreto 85.845/1981? Importante rememorar que o resgate do superado instituto do concurso interno, aberto a poucos escolhidos, pavimenta caminho para a parcialidade e direcionamentos, prática com a qual o constituinte rompeu em 1988.

As funções atribuídas legalmente ao Auditor, assim como ao Ministro-Substituto e ao Procurador de Contas, afetam as garantias processuais asseguradas constitucionalmente aos gestores que gerenciam ou aplicam recursos públicos, assim como às empresas que contratam com a Administração Pública. Por isso, é necessário concurso público específico para investidura em cada um desses cargos e autorização para o exercício dessas funções, que não podem ficar ao bel prazer do conceito de “qualificado” de um “designante” da vez, sob pena de se instaurar na Administração Federal uma grave crise de deslegitimidade institucional.

Assim, alinhado ao devido processo legal de controle externo, que inclui como garantia do auditado a competência do controlador para a prática dos atos de controle, a prática de um ato por agente não dotado de competência para tanto enseja a nulidade absoluta dele, à guisa do disposto no art. 2º, “a” da Lei 4.717/65, que regula a ação popular, abrindo margem, ainda, para a responsabilização pessoal dos agentes públicos que “houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissos, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos, conforme disposto no artigo 6º da aludida Lei”.

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[1] JACOBY Fernandes, J.U. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. 4. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 46.

[2] VIANA, Ismar. “Fundamentos do Processo de Controle Externo”. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2019.

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Artigo originalmente publicado no portal Jota. Acesse aqui!

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