A aderência da Resolução 334 do TCU aos ideais republicanos

 

No último dia 02 de dezembro, o Tribunal de Contas da União publicou a Resolução n. 334, de 2021, que dispõe sobre a instituição de regras e procedimentos para a apreciação dos requisitos constitucionais imprescindíveis à posse no cargo de Ministro daquele Tribunal, disciplinando, assim, a última etapa do ato complexo para ingresso no cargo vitalício de magistrado de contas.

Logo após a publicação do referido ato normativo, algumas matérias jornalísticas foram veiculadas com declarações atribuídas a professores, que, segundo consta, consideram a Resolução inconstitucional, em razão de ter sido editada por um Tribunal que não integra o Poder Judiciário.[1]

Diante de declarações dessa natureza, importa-nos questionar se o ato de escolha em manifesta inobservância dos requisitos constitucionais elencados no art. 73 da CF impede a reanálise deles, em sede de nomeação e posse, ou se esses atos estariam vinculados à escolha eivada de vícios não convalidáveis. Para além disso, necessário se faz questionar se a Resolução se manteve aderente à defesa da probidade no exercício do controle da gestão dos recursos públicos e se foi ela pautada pela busca da concretização do caput do art. 73, em sua inteireza, que impõe aos Tribunais de Contas a observância das normas de processo e das garantias processuais de quem lhes presta contas, a abranger, por óbvio, a independência e imparcialidade dos julgadores de contas. 

A literalidade do texto da referida Resolução já leva o intérprete a concluir ter havido cristalina aderência à Constituição Federal, que exige mecanismos diferentes para ocupação dos mais altos cargos das instituições republicanas. Para ingresso nos cargos eletivos de ocupação temporária dos Poderes Executivo e Legislativo, o §9º do artigo 14 da Constituição da República delegou à lei complementar a definição dos requisitos de inelegibilidade, atualmente fixados pela Lei da Ficha Limpa, a qual, embora inaugure importantes avanços em relação à Lei Complementar nº 64, de 1990, não foi aprovada tal como o Projeto de Lei de Iniciativa Popular foi concebido, impedindo o registro apenas de candidato com sentença condenatória proferida por órgão colegiado.

Já os requisitos para ingresso nos cargos vitalícios da Magistratura, Ministério Público e Tribunais de Contas são bem mais rigorosos em relação aos fixados pela Lei da Ficha Limpa para os cargos eletivos de caráter transitório. É que para ingressarem no cargo vitalício de Magistrado, os candidatos devem apresentar, por exigência do artigo 58 da Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 75, de 2009, certidão dos distribuidores criminais das Justiças Federal, Estadual ou do Distrito Federal, assim como apresentar folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia Civil Estadual ou do Distrito Federal, onde haja residido nos últimos 5 (cinco) anos.

Diferentemente, réus em ações de improbidade e denunciados por tráfico de drogas, por exemplo, poderiam se exercer a função de magistrado enquanto não fosse condenado em segunda instância (por um Tribunal). O conceito de idoneidade moral e reputação ilibada, por certo, não comporta esse tipo de contradição.

Aliás, a possibilidade de verificação objetiva dos requisitos de reputação ilibada e de idoneidade moral não é novidade, pode ser encontrada em diversos julgados da Corte Suprema e adotada pelo STJ (Precedentes: RE 211.207 SP (DJU de 6.3.98), HC 77.049 RS (DJU de 9.6.98) e HC 80.630 PB (DJU de 6.3.2001). HC 81.759 SP, rel. Min. Maurício Corrêa, 26.3.2002).

Quanto à presunção constitucional de não-culpabilidade, necessário se faz esclarecer que tal previsão não impede que se tome como prova de maus antecedentes do acusado a pendência contra ele de inquéritos policiais e ações penais (Precedentes: HC 70871 RJ (DJ de 25.11.94); HC 72370 SP (DJ de 30.06.95). HC 73.394 SP, rel. Min. Moreira Alves, 19.03.96).  Não se pode tomar por absoluto – e a jurisprudência do STF não o faz – o princípio da presunção de inocência, de forma a deixar a Administração Pública, os bens do povo, totalmente desprotegida, de modo a permitir a indicação de nomes impróprios ao exercício de cargos vitalícios de estratégica envergadura constitucional.

Não se pode exigir requisito menos rigoroso para ingresso no cargo vitalício de Ministro do Tribunal de Contas da União, até porque referido cargo é equiparado ao de Ministro do STJ, estando atrelado, portanto, às mesmas prerrogativas, garantias, vantagens e vedações, resultando claro que para fazer jus às prerrogativas de magistrado é necessário cumprir os mesmos impedimentos impostos a toda magistratura nacional.

Parece não existirem dúvidas de que o preenchimento da vaga de Ministro e Conselheiros vitalícios dos Tribunais de Contas é precedido de importante ato complexo: indicação, nomeação e posse, sendo dever das autoridades responsáveis por cada um desses atos verificar o cumprimento das exigências constitucionais de notório saber nas áreas de conhecimento exigidas, idoneidade moral e reputação ilibada.

Não por outra razão, o STF decidiu, no julgamento do recurso Extraordinário de Ação Popular 167.137-8-TO, que os requisitos estatuídos nos dispositivos constitucionais tornam os atos administrativos de indicação, nomeação e posse vinculados aos parâmetros objetivados pela Carta Política, sistemicamente. Para a Suprema Corte, por se tratar de ato vinculado, o Judiciário, quando provocado, não só pode como deve aferir a presença ou, ao contrário, a ausência dos requisitos constitucionais exigidos pelo artigo 73, § 1º da Constituição de 1988.

O entendimento do STF parece não abrir espaço para dúvidas: “Os atos que compõem a cadeia do grande todo – o ato complexo – hão de estar em harmonia com a Lei Maior do País, daí a possibilidade de o Tribunal examinar se aqueles constantes da lista sêxtupla atendem, ou não, aos requisitos constitucionais, da mesma forma que o autor do último, completando a cadeia, pode também fazê-lo” (MS 25.624-9).

Não se pode olvidar, também, que, desde 1946, as Constituições da República determinam aos Tribunais de Contas a existência de um quadro próprio de pessoal. Na Constituição de 1988, aliás, o art. 73 é a única passagem de todo o texto constitucional em que faz uso dessa expressão, referindo-se ao Tribunal de Contas da União, modelo imposto por simetria aos demais Tribunais de Contas brasileiros (art. 75). Essa inserção no Texto Constitucional busca exatamente garantir a imparcialidade das investigações e instruções processuais, bem como dos julgamentos, que são necessariamente integrados pelas manifestações técnicas dos órgãos de auditoria e instrução processual.

É inaceitável, então, a qualquer dos órgãos envolvidos no preenchimento da vaga (Casas Legislativas, Poder Executivo e o próprio TCU) eximir-se da responsabilidade sobre o eventual desvirtuamento da investidura por desatenção aos pressupostos definidos pela Constituição para a composição do Colegiado judicante dos Tribunais de Contas.

Para além desses aspectos, que, por si sós, merecem servir de paradigma para todos os Tribunais de Contas, não se pode negligenciar que “a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa”,[2] conformando-se ao “postulado fundamental que rege a atuação do Poder Público e confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado”, consoante o precedente assentado na ADI 2.661-MC (Rel. Min. Celso de Mello).

Em suma, o ingresso de novo membro no Plenário do TCU submete-se a sistema de compartilhamento de competências que visa a garantir a estrita observância dos requisitos constitucionais voltados à qualificação do Colegiado ao qual foi delegada a importante missão institucional da fiscalização do Poder Público, do que resulta necessário concluir que ao regramento constitucional estão vinculados não apenas os incumbidos da escolha do nome, posição na qual se alternam o Congresso Nacional e a Presidência da República, mas também a Corte de Contas, por seu Tribunal Pleno, sob pena de restar configurada a prática de ato desconforme à ordem jurídica e, assim, passível de invalidação. 

Nesse sentido, a Resolução TCU 334, de 2021, limitou-se a cumprir o comando constitucional insculpido no art. 73 da Lei Maior da República, buscando evitar que eventual inobservância desse comando venha a gerar irreparável déficit de eficácia normativa, e, por via de consequência, déficit de legitimidade institucional, abrindo, com isso, larga margem para o desvirtuamento da Instituição de Controle para a exploração de benefícios de interesses pessoais, impactando negativamente nos serviços públicos prestados à sociedade, desequilibrando processos eleitorais e agravando crises fiscais.

ISMAR VIANA. Mestre em Direito. Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC). Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN).

NIVALDO DIAS FILHO. Auditor de Controle Externo do TCU. Presidente da AUD-TCU.

 

[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/12/02/tcu-publica-resolucao-que-permite-ao-tribunal-vetar-nome-de-ministro-aprovado-pelo-congresso.ghtml

https://obastidor.com.br/justica/resolucao-do-tcu-que-barra-reu-como-ministro-atropela-constituicao-2206

[2] Ação Popular n° 0322615- 08.2014.8.24.0023 que tramitou na 1ª Vara de Fazenda Pública do Estado de Santa Catarina

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Artigo originalmente publicado no portal jurídico Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/356987/a-aderencia-da-resolucao-334-do-tcu-aos-ideais-republicanos

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