A função institucional do TCU no enfrentamento da corrupção

TCU
Sede do Tribunal de Contas da Áustria e da Secretaria-Geral da Organização Internacional das Entidades Fiscalizadoras Superiores (INTOSAI). Crédito: Rechningshof Österreich/Achim Bielek

 

Em 1º de fevereiro de 2022, foi publicado, no JOTA, um artigo do advogado e professor da PUC-SP, Dr. Jacintho Arruda Câmara, intitulado “Como avaliar a eficácia do combate à corrupção?”[1], em que o autor perguntava se a atuação do Tribunal de Contas da União (TCU) seria relevante nessa temática. O autor propôs que a atuação da Corte de Contas em casos relacionados à Operação Lava Jato, naquilo que chama de “sistema repressivo”, poderia fornecer dados objetivos para responder a essa pergunta.

Pretende-se trazer algumas contribuições ao debate proposto em duas partes. Esta primeira parte está relacionada a um aspecto pontuado pelo advogado e professor de que o enfrentamento da corrupção não seria “função institucional” do TCU. Não obstante, segundo o autor, o Tribunal estaria recebendo e ostentando “vestes de protagonista do combate à corrupção”.

A respeito disso, é preciso começar pelo aparente equívoco em dizer que o enfrentamento da corrupção “não seria função institucional” do TCU. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 criou uma rede de controle da Administração Pública, abarcando diversos órgãos com múltiplas competências e papéis. Todos eles têm alguma tarefa a desempenhar no enfrentamento da corrupção, incluindo o TCU, considerando que a corrupção é um fenômeno complexo originado por diversas causas e que acarreta múltiplos efeitos.

Não à toa, a Constituição Federal de 1988, ao tratar do controle externo independente, em seu art. 71, incisos II e VIII, afirma ser tal controle exercido pelo Congresso Nacional, com o auxílio do TCU, mencionando suas competências jurisdicionais (poder de julgamento), em casos de “perda, extravio ou outra irregularidade que resulte em prejuízo ao erário público”, inclusive aplicando sanções proporcionais ao dano. Outra competência relacionada à matéria deriva do inciso IV do mesmo artigo – realizar auditorias e inspeções, por iniciativa própria ou a pedido das Casas Legislativas.

Caberia perguntar se a corrupção tem ou não, como um de seus efeitos, o prejuízo ao erário público. As respeitadas autoras Susan Rose-Ackerman e Bonnie Palifka[2] indicam que sim. Logo, dentro deste singelo exemplo extraído do texto constitucional, o TCU tem sim uma cristalina função institucional a desempenhar nessa matéria. De mais a mais, restaria prejudicado o próprio cumprimento do inciso IV, art. 71 da CF, quando se pontua objetivamente que cabe ao TCU a condução de trabalhos de natureza não só contábil, como sugerem equivocadamente alguns estudiosos[3], mas também de natureza “financeira, orçamentária, operacional e patrimonial”.

Do ponto de vista internacional, além da Convenção das Nações Unidades Contra à Corrupção (UNCAC), internalizada pelo Decreto Legislativo 348/2005 e promulgada pelo Decreto 5687/2006, recente Declaração da Assembleia Geral da ONU (sessão especial de maio de 2021[4]) reconheceu o papel das Entidades de Fiscalização Superiores (SAI) em prevenir e combater a corrupção, como também de outros órgãos anticorrupção especializados. As SAI (Supreme Audit Institutions) são entidades com funções equivalentes ao TCU em seus respectivos países.

Para se frisar a importância que a ONU vem dando à plena implementação da UNCAC, também chamada Convenção de Mérida, a Conferência dos Estados Partes (CoSP) editou em dezembro de 2019 a Resolução 8/13 (Declaração de Abu Dhabi), com o objetivo de aperfeiçoar a colaboração entre as entidades fiscalizadoras superiores e as autoridades anticorrupção e combater de forma mais eficaz o problema. Este compromisso foi recentemente reforçado por meio da Resolução L.5, que destaca a utilização das tecnologias de informação e comunicação, durante a 9ª sessão da CoSP, em dezembro de 2021.

A Organização Internacional das Entidades Fiscalizadoras Superiores (INTOSAI), entidade da qual o TCU faz parte e que presidirá entre 2022 e 2025, tem atuado ativamente com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) em programas globais contra a corrupção. Nesse sentido, foi oficialmente assinado em julho de 2019 um Memorando de Entendimento entre a INTOSAI e a UNODC, a fim de proporcionar um quadro para uma cooperação eficaz.

Por fim, também reconhecendo a efetividade da prevenção da corrupção, a INTOSAI emitiu diretrizes sobre auditoria em prevenção a corrupção a seus membros em 2019[v].

Logo, o entendimento de que a Corte de Contas brasileira não deve atuar no enfrentamento da corrupção é contrário a ações e iniciativas globais empenhadas nesse sentido.

Como dito, pretende-se, em breve, trazer um segundo artigo sobre esse mesmo tema. Nele, será abordado o outro ponto levantado pelo advogado e professor, isto é, qual teria sido a atuação do TCU nos casos relacionadas à Operação Lava Jato pretérita ao início das investigações penais. Teria o Tribunal sido ou não diligente e alertado à sociedade acerca dos riscos posteriormente materializados?

*As opiniões expressas pelos autores não necessariamente representam a visão institucional do TCU.

Victor Hugo Moreira Ribeiro é especialista em governança e controle da regulação em infraestrutura pela Escola Nacional da Administração Pública (ENAP) e auditor do TCU.

Rafael Martins é pós-graduado em engenharia diagnóstica (Unicid), pós-graduado em controle e repressão a desvios de recursos públicos (Estacio-CERS), pós-graduando em análise econômica do direito (ISC-TCU) e pós-graduando em data science (ESALQ-USP) e auditor do TCU.

André Amaral Burle de Castro é graduado em engenharia civil e ambiental (UnB) e especialista em auditoria de obras públicas rodoviárias (UnB) e auditor do TCU.

Rafael C. Di Bello é mestre em ciências de engenharia civil pela COPPE/UFRJ e auditor do TCU.

Acácio Lopes Neto é bacharel em administração (UDESC/ESAG), pós-graduado em direito público com ênfase em gestão (Damásio) e auditor do TCU.

Celso Bernardes Silva é engenheiro civil (UFMG), especialista em engenharia de custos (IBMEC) e auditor do TCU.


[1] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/como-avaliar-eficacia-combate-corrupcao-01022022, acesso em 2/2/2022.

[2] ROSE-ACKERMAN, Susan & PALIFKA, Bonnie J. Corruption and Government: Causes, Consequences and Reform. Cambridge University Press, 2016.

[3] https://www.linkedin.com/posts/thiago-reis-7a632023_bundesrechnunghof-kritisiert-linders-nachtragshaushalt-activity-6886714020347293696-q_Pe/

[4] https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/June/first-ever-un-general-assembly-special-session-against-corruption-begins-with-call-for-bold-global-action-to-tackle-corruption.html

[5] https://www.issai.org/wp-content/uploads/2019/08/GUID-5270-Guideline-for-the-Audit-of-Corruption-Prevention.pdf

 

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Artigo originalmente publicado no portal Jota. Clique aqui para acessar! 

 

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