O que se debate, afinal, em um congresso de auditores de controle externo

*Ismar Viana


Centenas de auditores de controle externo de todo Brasil estarão reunidos em Fortaleza, entre os dias 21 e 25 de novembro, para participar do 5º Conacon, o congresso nacional da carreira. Para quem olha de fora, o encontro deve parecer demasiadamente técnico, até descolado da realidade nacional. Essa percepção externa é, provavelmente, consequência do rigor técnico e do olhar minucioso e crítico que as atribuições do cargo exigem dos seus ocupantes, pelo que se faz oportuno esclarecer os propósitos do congresso ao deflagrar debates verdadeiramente plurais.

Para compreender melhor o objetivo do evento, é preciso esclarecer que os auditores de controle externo integram as chamadas carreiras essenciais ao funcionamento do Estado, ou seja, ocupantes de cargos efetivos cujo provimento, por óbvio, exige a aprovação em concurso público específico de nível superior, vez que titularizam, de forma plena, as importantes e complexas atribuições legais de interesse púbico: realização de auditorias e inspeções, emissão de pareceres de instrução sobre as contas públicas e demais procedimentos de fiscalização. São eles integrantes dos tribunais de contas da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e, grosso modo, são responsáveis por fiscalizar a arrecadação e aplicação do dinheiro público.

Quando os integrantes dessa carreira se reúnem em um congresso, o que está em pauta são questões fundamentais para a boa vida em sociedade, o que depende da correta aplicação dos recursos públicos. Em cada área em que se faz necessário o investimento de dinheiro público, a atuação do auditor se torna fundamental para garantir a integridade e a eficácia da ação estatal, elementar em uma democracia.

Pois bem: 34 anos após a promulgação da Constituição Federal, que delimitou as bases para a organização atual dos tribunais de contas, o controle externo ainda enfrenta grandes desafios. É ainda patente a necessidade de superação do ranço patrimonialista daqueles que ainda não internalizaram o sentido e alcance de bem público, mas que se autointitulam defensores de bens, valores e dinheiros públicos. São pessoas que costumam retirar do bolso a expressão “democracia” com o propósito de fazer parecer crer que as suas ações são democráticas, num farisaísmo autoritário que é facilmente percebido até por quem é desprovido de capacidade intelectiva. Quando esses agentes compreenderem que “a coisa pública é coisa de todos, mas não é coisa sem dono”, os demais desafios serão fluidamente superados, até porque são nitidamente contrários aos ideais republicanos.

Sabe-se que o Brasil é um país de dimensão continental, mas a extensão territorial nunca foi óbice à aplicação de uma mesma lei processual penal de norte a sul do Brasil. Com os tribunais de contas não pode ser diferente e as narrativas de que as peculiaridades de cada tribunal de contas impedem a formulação de um padrão mínimo de organização e de uma lei processual nacional, a bem da verdade, têm a nítida intenção de preservar o status atual de disfunção institucional de alguns tribunais cujos índices de efetividade são tão desconhecidos quanto as ações correcionais contra quem age com abuso de poder.

Peculiaridades são, sim, consideradas e devidamente valoradas, como se aprende nos bancos acadêmicos, no momento da aplicação do texto normativo. Assim, resistir a que o Parlamento institua normas gerais voltadas a um padrão mínimo para o exercício do controle externo da administração pública é o mesmo que atuar em manifesto desfavor de quem tem o dever de prestar contas, furtando-lhes o direito de conhecer previamente as regras do jogo.

É preciso tirar a venda do autoritarismo funcional dos olhos para enxergar com lentes de aumento que o constituinte dos oitenta pavimentou terreno para a interdição dos arbítrios dos poderes públicos. A Lei Maior da República quer que aqueles que têm o dever de prestar contas sejam tratados como sujeitos de direitos, e não como objetos de auditoria vulneráveis a quem faz uso do controle para satisfazer interesses que não coincidem com a garantia da boa, proba e legítima gestão de recursos públicos.

A ausência, portanto, de um padrão mínimo de funcionamento dos tribunais de contas sujeita os agentes controlados a alto grau de risco de lesão a direitos fundamentais, dada a existência de válvulas para a ocorrência de interferências ilegítimas no exercício da função de auditoria. Esses problemas inviabilizam o exercício da função de controle, impactam na qualidade e independência das investigações, instruções processuais e, por via de consequência, nas decisões dos tribunais de contas que ainda não se conformaram ao modelo constitucional, definido desde 88, de cuja concretização dependem as crianças que precisam de uma educação pública de qualidade, por exemplo, agenda largamente abraçada e difundida por nós, agentes do controle.

Como análises técnicas bem fundamentadas derrubam sofismas e proselitismos políticos, o produto resultante das atribuições funcionais dos auditores é um poderoso instrumento de avaliação da gestão pública. Se a preocupação deve ser com a qualidade da política pública, sua avaliação e controle não podem partir de bases voluntaristas, mas sim de um processo justo, devido, adequado e inequivocamente imparcial. É um filtro que separa o joio do trigo e nos salva da perigosa tentação de jogar em vala comum os bons e os maus gestores.

Nos próximos dias, portanto, auditores e auditoras de controle externo de todo o Brasil estarão unidos com tantos especialistas pelo mesmo propósito: debater, de forma plural e verdadeiramente democrática, meios para a superação das disfunções dos tribunais de contas, uma vez que elas colocam em xeque a credibilidade social na atuação dessas instituições que receberam da Constituição democrática a indisponível missão de atuar em defesa da manutenção da democracia, e não de criar embaraços a esse regime que nos proporciona desfrutar de bens inalienáveis, a exemplo do exercício da liberdade de expressão.

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* Ismar Viana é mestre e doutorando em Direito Administrativo (PUC-SP). Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador brasileiro (Idasan) e da Comissão de Direito Administrativo Sancionador da OAB Nacional. Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), auditor de controle externo, professor e advogado.

** Artigo originalmente publicado no site Congresso em Foco, em
21/11/2022

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